domingo, 17 de novembro de 2013

ao invés



apenas uma questão de língua e do ângulo dos raios solares sobre a mão que te afaga os seios enrugada amarelecida do tabaco cansada dos sonhos perdidos num qualquer rochedo.
apenas uma questão de horário do comboio que me leva para norte onde a aridez das casas serpenteia entre as guedelhas esbranquiçadas que me cobrem os olhos.
apenas uma questão de teclas empanadas do piano que abandonei ao fogo em desespero de fuga maior.
apenas uma questão de odor de livros húmidos sangrando palavras inúteis nas celas beneditinas.
apenas amantes ou nem sequer
apenas talvez para depois
fique sem efeito
foi um engano
apenas

domingo, 3 de novembro de 2013

lágrimas









implosão da frase
no meu coração:
ninguém vê os estilhaços
cravados nas veias
disfarço os soluços
em tatuagens
sobre os olhos
e a raiva afoga-se
nas esquinas do pó
engulo as facas de
dois gumes
disparo às cegas
sobre os meus pés
e rasgo o dorso
do amor
num caderno
de mercearia a cheirar
a bolor
quando faço silêncio
é porque seria
incredível
mostrar as chagas dos
sonhos que carrego
nos bolsos
descalço
caminho sobre o vulcão
barba grisalha
de esperar a lâmina
que há-de conjugá-la
sobre o poema
ao fim do terceiro dia.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

nova grafia



não é a pena
de Perdigão
nem a dor
de Pessoa
autopsicográfica:
é a mágoa
deste país decepado
que empena
as calhas
do coração.

domingo, 13 de outubro de 2013

kairos




em cima da mesa
o café e o tabaco
memórias distantes
de mnahãs assim chuvosas
num quartier-latin
com cheiro a patchouli
de mistura com a brasileira
e uma janela sobre o mar
postais da provença
notícias do festival d'avignon
o siroco lá fora a
aconchegar o corpo jovem
sedento de amor
agora
este tecido desfaz-se
sob a caneta com
décadas de histórias
desabituada de epístolas
pueris dos postais de férias
das cartas da guerraesquecida

ela pede-me silêncio.
ela pede-me música.
ela pede-me solidão.

em cima da mesa
isolo-me do ruído
com headphones dos chineses
e parto à procura
de um sinal apenas
de um suspiro ou odor
de uma silhueta
que encaixe no meu colo
de um diálogo feito
só de olhos e gestos
que derrube as caderias
que alerte os costumes
que escandalize os jornais
na linha das tuas costas
desenharei
um grito a bâton
de amor
qie consiga sobrepôr-se
à comodidade dos sim.

vem comigo
fugir de kronos.

sábado, 12 de outubro de 2013

imperativamente

 
J.H. Lartigue
 
não te sentes assim
despudorada
de braços abertos ao destino:
posso tropeçar-te
nas pernas
e desviar-te do rumo
aprumado.

domingo, 6 de outubro de 2013

pas de deux

 
 
prefiro acordar
na tua língua
sobre o mar
na pele de cetim
adamascado
no silêncio
que nos cobre
o desejo.
 
prefiro acordar
em pas de deux
a não acordar.


domingo, 29 de setembro de 2013

le partage



le partage du silence
celui qui vient
de la terre qui
nie le néant
ce partage humide
qu'on reconnaît
à la rime du café
et qu'on se défend
de mettre en scène
à la simple peur
de le perdre
à jamais

le partage du silence
que je trouve
en caressant
ta langue
qui ne m'est pas
étrangère.

sábado, 21 de setembro de 2013

conjugação defectiva

 
Aleksandr Rodchenko
 
 
estranho
-me desentranhada
do tédio meticuloso
há décadas enraizado
nos olhos embaciados
 
corações ao alto!
 
 
a casa invólucro
de histórias abortadas
escombros sobre
os ombros tatuados
de uma fénix
renascida das vindimas
 
cálices ao alto!
 
 
palavras cansadas
dos caderninhos engavetados
gritam de noite
pelos telhados vadios
fornicando com as gatas
cinzentas
 
canções ao alto!
 
 
e jazzo-me nua
à berma da varanda
filiforme oblíqua
ousadamente.
 


sábado, 24 de agosto de 2013

in memoriam

 


Foto de Andrzej Krynicki
 
foi a treze de agosto
que me cruzei com Lorca
à saída de Granada
foi a treze de agosto
que o céu de chumbo
caiu sobre o Alentejo
foi a treze de agosto
que todas as aves negras
sobrevoaram as planícies de girassóis
e a cidade de granito
ruiu sobre os sonhos das crianças
 
foi no terrível dia treze de agosto.
 
 
 
 
foi a treze de agosto
que todos os comboios
descarrilaram sobre as pontes
foi a treze de agosto
que o silêncio se travestiu
de trovoadas debaixo dos meus pés
foi a treze de agosto
que as palavras de dois gumes
me esventraram as costas
foi a treze de agosto
que o curso das águas
se desviou da direcção do mar
e as confissões dispersas
perderam o rumo
 
 
 foi no terrível dia treze de agosto.
 
 
 
 
 



 


domingo, 28 de julho de 2013

au-delá des nuages

 
 
 
gosto das manhãs de domingo vazias, apenas vizinha das mulheres e homens mais velhos dos prédios envolventes que não sabem o que fazer da cama depois de acordarem com a luz do dia. é este mundo de silêncio e tabaco, de jornais e cafés, desconectado da aldeia-global-afinal-metrópole, a cheirar a bairro que me deixa tempo para abrir o moleskine-à-vila-matas e escrever como dantes, sem rumo nem história, ao sabor da pelikan que insite no seu atrito com a folha, como a pedra de cabral de melo neto. é oração que faço ritual de uma religião acabadinha de inventar.
não quero fazer de conta que estou muito à la page; não quero andar distraída com o joio dominante.
 
voltarei a usar relógio de ponteiros.
 
quem vier que abra outras portas.





segunda-feira, 8 de julho de 2013

viajando

 
(da net)
 
 
fiz as malas e parti.
 
lá dentro vão os olhos que sorriram e choraram, vão palavras, umas gastas outras virgens, vão fotografias e filmes, músicas e pinturas. vão botões, dedais, flores, postais, jasmim, patchouli, uma guitarra por tocar, pedaços de paris e de veneza, um recanto da ponte vechio, um canal de amesterdão, uma fachada rosa debruçada sobre o rhône, um isqueiro da córsega e um cinzeiro do alentejo. o mel é da provença. o azeite e o vinho são do douro. as couves são galegas os barcos de finisterra.
e levo a vitória de samotrácia ao contrário de marinetti e com o assentimento de campos num chevrolet pela estrada de sintra até à casa de llansol ____________________________
 
porto.
 
 
 
 
 


segunda-feira, 24 de junho de 2013

entre dois silêncios



fixar o momento
que se esvai em cascata
apenas com uma
palavra a preto e branco
é o prazer inesgotável
da mão que afaga
um pescoço
na curva
para o ombro.

domingo, 26 de maio de 2013

cantiga de amor


basta-me fechar os olhos
para sentir o desenho
do teu rosto sob a polpa
dos meus dedos
cegos de esperança

é sossegado este desejo
de amor subversivo escondido
numa folha amarrotada
é mudo o verbo
que declino e no entanto
ouves o sussurro
algures neste mundo

amar-te assim intransitiva
mente chega a ser o sonho
pueril de um rio que
transborda do seu leito
desassossegadamente.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

elogio da fealdade

 
não aguento o peso da
perfeição que carrego
na memória
 
erguei um altar em nome
da fealdade
 
não suporto a nitidez deste
tempo suave
a três dimensões
 
acendei uma vela no mastro
das naus afundadas
 
não quero a juventude
eterna comprada
em ginásios da moda
 
preparai um esquife virado
a norte ao som de uma morna
 
:é guloso este prazer
da imperfeição

quinta-feira, 25 de abril de 2013

que farei com este abril?

 
 
39 anos para colocar na prateleira um cravo chamado abril com os sonhos que albergava de que restam alguns defensores com a memória tatuada de canções que resistem à onda de ignorância paulatinamente instalada nos corredores dos passos perdidos. 39 anos para enterrar no túnel da história minúscula uma metáfora que corria de boca em boca e ainda assim se mantinha inédita como se dita sempre pela vez primeira. 39 anos para expulsar os poetas da cidade e substituí-los minuciosamente por amanuenses bem comportados.
quantos anos mais para delapidar a gente que constrói as obras públicas para deixar os mortos por enterrar e os vivos abandonados ao esquecimento?


sábado, 20 de abril de 2013

em movimento


regressar a casa nunca
encerra nenhum círculo
da mesma forma que
nunca é o mesmo rio
que passa por esta margem

há um sabor inesperado na
impossibilidade de terminar uma tela
da mesma forma que
a primavera insiste em
regressar sempre diferente

assim Godot
apareça em Elsinore.

sábado, 6 de abril de 2013

outras cinco horas da tarde

 
Jaya Suberg
 
 

às cinco horas da tarde.
há sempre terríveis cinco horas da tarde insuspeitas a espreitar o caminho que julgamos ser nosso e afinal é apenas uma rasura no tecido do mar. por vezes são cavalos outras duendes que irrompem pela página de talha dourada em desequilíbrio barroco marcando as cenas da História com a indiferença altiva do perpétuo movimento da guerra e da fome sobre os ombros cavados de sangue. e assim a si assiste o homem ensimesmado na glória dos poderes a um abismo entre Bizâncio e Istambul que não sabe decifrar.
são cinco horas da tarde.

 


segunda-feira, 1 de abril de 2013

silêncio

 
Christiane Zschommler
 
 
de vez em quando o silêncio
aquele que traz uma rosa
de sangue ao peito e ergue
os ramos ao vento
 
de vez em quando o pão
em cima da mesa que cobre
de linho os raios de sol nascente
em oração de deuses caseiros
 
de vez em quando o mar
na borda da janela que acena
aos poetas pátrias sem nome
e descobre tormentas de amor
 
de vez em quando o silêncio
na raíz do coração

sexta-feira, 29 de março de 2013

ao invés de Fénix



há um fosso letal
que separa dia a
dia o corpo ensanguentado
do desejo latente
na alma intemporal
parede medieva
que encerra qualquer
atrevimento de luz
pústulas brotam
nos sonhos
cáries invadem
os olhos
metástases abarcam
o sabor
outrora polícromos
entre a efemeridade
do verbo
e a circunstância
dos nomes
_________________________
assim o texto
se rarefaz silenciosamente
numa cadência
metronómica

segunda-feira, 25 de março de 2013

diálogo poético para uma vida de chuva



rosas de cetim
esgarçaram as cordas
vocais de uma
ilusão naufragada:

                                  - foram pétalas atiradas
                                    a porcos com a precisão
                                    de um monumento à
                                    ignorância reinante.

lançaram-se poemas
vadios das varandas
debruçadas sobre
os rios escritos a sangue:

                                         - foram palavras
                                            imundas que caíram
                                            a pique nos entulhos
                                            meticulosamente desempregadas.


vão-se os sonhos
e com eles a memória
dos dias felizes.

sexta-feira, 22 de março de 2013

estreia absoluta

 
(da net)
 

no intervalo das palavras
irrompe
a ditadura da imagem
colorida em 3 D
que encobre uma realidade
plana secante sufocante
silenciadas as mentes
empobrecidas as gentes
arrancadas as árvores
pela raíz dos barcos
(definitivamente expulsas
da cidade a poesia
do mar a esperança
da alma a loucura).

aprumam-se os bonecos
em desfile bem comportado
preparam-se os garrotes
para a massificação da miséria
monta-se o auditório
para um público de élite
que se prepara em bicos de pés
na fila primeira
para assistir ao enforcamento
dos paisanos
curvados de olhos vendados
por dentro que caminham
em silêncio mudo
para uma morte não anunciada.

e sobrarão alguns livros
para contar a história
deste jardim
à beira-mar dizimado.

quinta-feira, 7 de março de 2013

la lune

 
 la lune (wild is the wind) (40x50) paris, 2012 (collage: Emanuele Balzani; photo: Tony Querrec)
 

também eu prefiro as rosas à pátria. habituei-me à chuva de cristal que fende a pele lâmina de gelo assobios naufragados nas vielas sem nome. nocturnos gemidos erguem-se até à lua mil vezes revisitada por bardos ultra-românticos e eu escapo do vento entre riachos de luz com soluços de contrabaixo. pode trovejar em cima do palco, podem sufocar os actores, pode nada valer a pena de perdigão que eu agarro as rosas pelos espinhos e espalho-as pelo corpo ensanguentado até que a alvorada chegue e se instale estáctica sobre os olhos já cegos.




sábado, 2 de março de 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

25 de fevereiro 2003/2013



- Filha, quando tudo estiver muito negro, quando o peso nas costas parecer insuportável, quando não conseguires respirar este mundo poluído, sobe a uma montanha.
- Porquê, Pai?
- Verás que o ar é mais leve, as pessoas ficam pequeninas, insignificantes, e os problemas também. Respira fundo, enche os pulmões de Natureza.

Muitas dezenas de anos depois:
- Obrigada, Pai. Não leste T. S. Eliot, mas ajudaste-me a gostar dele.
Dá-me a mão e vem comigo até ao Marão de Pascoaes. Vamos comer uma feijoada e beber um maduro tinto. Conta-me a tua história de amor. Ensina o segredo para as tuas últimas palavras:
- Como está a Mãe? Trata dela. – disseste há dez anos atrás. Fechaste os olhos, cansado. A mão entrelaçada na minha. Assim permanecemos juntos, de mãos dadas, até ao fim.
Agora vou até à montanha.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

procura-se

 
Wolf Ademeit
 
 
procura-se um intervalo
possível entre o silêncio e as palavras
um rumor de água
uma película de luz
que aconchegue as feridas
de cada vez que faz domingo chuvoso.
 
nas circunvoluções cerebrais haverá com
(in)certeza uma medida para
celebrar a poesia.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

assim, disse ela

 Edward Hopper
 
 
apareça um dia ao fim da tarde.

beberemos uma tisana na esquadria da janela e tocaremos a quatro mãos a polpa dos pêssegos.
venha conhecer o meu horizonte. depois
(se quiser)
 
parta com as gaivotas. a mim, basta-me mergulhar nos seus olhos.
e morrer.
 


domingo, 3 de fevereiro de 2013

cantiga


ay, meu mar salgado,
quanto do teu sal
resgatou as palavras do meu dicionário!
as ondas do verde pinho
espraiam-se pelas páginas
outrora alvas e nós meninas
bailamos y!
o vento lavou lençóis
os cervos saltaram pinhais
e um suspiro bastou
para regar de sangue
os barcos dos poetas.
pela brisa da madrugada
pergunto novas de meu amigo
ay, mar y u é?

 
é tanta a literatura que te escorre pelas veias
lá na Praia da Boa Nova lazúli
que eu sem ti não vivo
em ti me morro.

sábado, 12 de janeiro de 2013

palimpsesto


 

atravessa esta janela
uma chuva não oblíqua
estafada da ignorância
atracada no porto
sem viagem marcada
já não é ensurdecedor
o barulho das engrenagens
no reino asséptico
da leveza forçada
em que mergulhámos
não há vestígios de
estreptococos
a não ser nas almas de poetas
e a rugosidade das paredes
apenas se vislumbra
em imagens virtuais
que algures captaram
esculturas furiosas
para testemunharem
como foi intensa
a passagem pelo mundo

 
os vindouros porém
não conseguirão suspeitar
sequer como é
o odor de uma rosa
ou de um copo de vinho

sábado, 5 de janeiro de 2013

do lado das sombras



Sigfrid Burvenich



acendo palavras de baixo consumo
folha a folha
enquanto as vozes periféricas
se misturam com o fumo
reconstruindo um ambiente
muito amarelecido pelo tempo.
esforço-me por rever os contornos
das pessoas mas não passam de sombras
chamo os nomes das cidades amantes
e desequilibro-me diante do abismo
declino os pronomes pessoais e
encontro-os defectivos
defeituosos
desdentados
desmembrados
a paleta dos verbos dilui-se em verniz
por isso os meus dedos ficam gretados
e já não tocam o piano que nunca sonharam.
suspeito que seja inútil
subir escadas
ou penhascos
porque os meus olhos estão
turvados de memórias exangues

se houver um verão ainda
talvez
um feixe
de luz